Tal ceguinho era religioso por vocação e por necessidade. Gostava de assistir às missas, rezar pelos benfeitores, ouvir a palavra de Deus orada do púlpito pelos melhores jesuítas e de adormecer à noite com as camândulas presas entre os dedos magros ― de tísico... A religião dava-lhe prazer e rendia-lhe coroas. Vendo-o tão pio, as beatas ricas fartavam-no de esmolas e até lhe inventaram o vício de fumar para ele se entreter ― as santas criaturas.
Morava numa casa térrea ao rés do adro e tinha por costume sentar-se nos degraus de um cruzeiro levantado diante da igreja. Ali vivia ― preso àquelas pedras com mais amor do que ao buraco da casa. Dali espreitava tudo ― se é que os cegos espreitam. Não espreitava, mas, ouvia. Dava relação de quantos passos feriam a testada do templo. Passos apressados de homens que não tiram o chapéu a ninguém ― menos a uma cruz. Passos frívolos de senhorinhas que fazem vénia, mas ligeira, a Nossa Senhora. Passos doentios de senhoras de idade, cuja reverência ao Santíssimo é meiga e prolongada. Passinhos de criança sobre o saibro, tic, tic, davam ao ceguinho a impressão do primeiro granizo que pinga na areia.
Afeito àqueles ruídos, conhecia-os todos, identificava-os, sabia o nome aos pés que os produziam. Tinha que fazer, contando-os e nomeando-os, porque o adro era aberto e muita gente o atravessava para ir mais depressa à sua vida.
O cego não pedia esmola. Cumprimentava e recebia. Quando, no meio daquele perpassar de pés e pernas, reconhecia amigo ou devota, dizia:
― Senhor F., o dia está bonito.
Ou:
― Minha Senhora! A missinha amanhã é mais cedo. A Senhora sabe... Disse o Senhor Abade...