Tales of Mystery and Imagination

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Mário-Henrique Leiria: Regressos



Lourival tinha finalmente conseguido o tempo suficiente e o local apropriado para escrever o livro que trazia na cabeça. Alugara uma casinha pequena, bem no interior do país, completamente isolada e rodeada de pinheiros sussurrantes. Afastada da estrada principal e da aldeia, chegava-se lá por uma azinhaga que mal permitia passagem ao velho Fiat.
Instalara-se, com a máquina de escrever, entre a mobília simpa-licamente modesta, e dispusera-se a trabalhar com eficiência durante seis meses, pelo menos. Alimentação tinha-a ali ao alcance, na aldeia. E um bom vinho, um pouco fechado mas gostoso, numa tasca discre­tamente escura e convidativa onde, às vezes, passava uma hora, ou até duas, de conversa fiada com os velhos pachorrentos. Sem televisão, que ali não chegava. Na verdade, tudo pelo melhor.
Estava a terminar o segundo capítulo com relativa facilidade. Corria bem, fluente, o enredo deslizava e o problema desenvolvia-se, lógico.
Meteu nova folha na máquina e ia levar à boca o copo de tinto, quando ouviu bater na porta da frente que dava mesmo para a casa de entrada onde costumava trabalhar e comer. Admirou-se. Bem, talvez alguém da aldeia a pedir-lhe que escrevesse uma carta para França, Alemanha ou coisa no género. Um pouco intrigado, foi abrir. E deu um passo atrás, num pasmo imenso.

À sua frente, recortado pela luz do sol já próximo do poente, um homem enorme e barbudo olhava-o. Mas isso era o menos. Afinal já vira bastantes indivíduos hirsutos, aliás era do costume vigente andar assim. A coisa de pasmar é que vinha de couraça, elmo grego empenachado com viseira subida, saiote pela coxa, escudo redondo (com um relevo indecifrável) enfiado no braço esquerdo, espada curta pendente ao lado e, é claro, sandálias. Além disso, cheirava muitíssimo mal.
O provável guerreiro barbudo deu-lhe um encontrão agressivo, entrou e ficou especado a olhar para tudo, com o sobrolho franzido.
Lourival começou a pensar activamente, duvidando que os americanos já tivessem chegado ali, com o filme histórico. No entanto, como costumam chegar a toda a parte, do Chile a Oeiras, tudo era possível.
O estrangeiro continuava a olhar em volta. Observava a mesa, as cadeiras, o sofá velho junto à lareira, os livros nas prateleiras. Pôs um dedo na tecla da máquina de escrever. A tecla saltou e fez tac. Recuou e franziu mais o sobrolho.
Lourival não se conteve. Atirou a pergunta, áspera:
- Afinal o que é que você quer?
O outro virou-se. Parecia ainda novo, embora a barba, o mau cheiro e um certo ar brutal não o ajudassem muito. Encarou Lourival e, de repente, teve uma expressão de cansaço que lhe adoçou um pouco os traços duros do rosto. E começou a falar.
Louriçal ficou varado. Pelo que se lembrava do distante ano dos liceus, estava a ouvir grego, grego antigo, com pouquíssimas decli­nações, aliás. Veio-lhe imediatamente à memória a Ilíada, Anacreonte, Píndaro e toda a estopada consequente.
O possível grego explicava-se. Gesticulava. Atirou um murro tremendo à mesa e calou-se, de braços caídos.
Lourival não sabia o que fazer. Aquilo não era possível, não podia ser. Então não é que o visitante inesperado se afirmava como Alexandre da Macedónia! Alexandre, o Iskander da chegada às índias! Ele há coisas do diabo! Mas resolveu encarar o acontecimento tal como se devia. Sorriu conciliador, fez um gesto largo e apontou uma cadeira junto à mesa. Não se deve irritar desnecessariamente ninguém.
Alexandre, o da Macedónia, sorriu também ao de leve mas, logo em seguida, fechou a cara. Sentou-se, com novo murro na mesa. Tirou escudo e elmo, atirando-os para o chão ao lado da cadeira. Depois começou a coçar a guedelha encaracolada, razoavelmente imunda.
Lourival não esteve com meias medidas. Pegou no avantajado caneco de barro ainda meio de vinho, que estava na mesinha ao lado da lareira. Com movimento eficaz do braço, apresentou-o ao Alexandre. E ficou a ver.
O grego em potência pegou no pichei que talvez lhe recor­dasse qualquer coisa milenária, sabe-se lá, e levou-o à boca. Sôfrego, emborcou tudo, limpou a boca com as costas da mão, bateu com o caneco na mesa e riu, riu abertamente para Lourival.
Lourival não teve mais dúvidas. Aquilo era mesmo um vinhão e o outro era mesmo o brigão histórico. Puxou uma cadeira e sentou-se também.
O macedónio, numa última gargalhada, pôs-se de pé. Deu uma tremenda palmada nas costas do Lourival, desafivelou a cinta de couro entrançado e atirou a espada curta para cima da mesa. Pôs as mãos nas ancas, de punhos fechados, e ficou a olhar, voraz, para um pão saloio poderoso que Lourival comprara na véspera, na esperança do lhe durar toda a semana.
Lourival, ainda meio engasgado com a palmada, recordou as obrigações da hospitalidade e ergueu-se para ir buscar o pão. Foi quan­do ouviu entrar alguém, pela porta que ficara aberta. Virou-se e deixou de se preocupar com o pão.
À entrada estava um homem alto, talvez nos cinquenta anos experientes, careca, nariz aquilino, magro e enrolado numa coisa que parecia um lençol de luxo. E de sandálias, era óbvio. Lourival teve a sensação súbita de já o ter visto. No entanto, o traje do outro pareceu-lhe um pouco impróprio.
- Vale - disse o recém-chegado, erguendo subtilmente a mão direita, com os olhos a abundar de ironia.
— Ave César - respondeu imediatamente Lourival, num con­dicionamento dado pelo De Bello Galico do 6.° ano remoto.
Júlio César deu uns passos, folgou a toga que o apertava, com o punho, onde se desenhava uma longa cicatriz pelas costas, da mão, afastou a cadeira junto à mesa e sentou-se em frente do grego fedoren­to, capitão de exércitos e conquistas.
Lourival, já disposto a tudo, pegou no pão magnífico, numa garrafa de vinho da terra que estava no chão, logo ao lado da porta da cozinha, tomou a posição que lhe pareceu mais digna e pôs tudo em cima da mesa.
Os visitantes estavam a conversar.
Lourival não percebeu patavina. Aquilo nada tinha a ver com o que aprendera no liceu e noutros sítios. Soava como uma língua viva, cantante, inesperada. E foi até à porta, espreitar o tempo e certificar-se bem onde estava.
Lá fora o murmúrio dos pinheiros continuava. O sol descia, dis­tante e familiar, deixando uma leve cor de nostalgia a pairar, pregui­çosa, por cima de tudo, como manta de retalhos quente o esburacada.
Pareceu-lhe notar qualquer coisa invulgar, como se a casa esti­vesse envolta em transparência oscilante, mas a ideia foi-se-lhe embo­ra ao ouvir o som burocrático do sino na povoação.
Voltou para dentro, na intenção de pedir explicações e, se possível, entrar na conversa, que um bate-papo era coisa que sempre lhe agradara.
Grego e romano levavam a garrafa à boca, numa alternância rítmica bem simpática. E falavam. Falavam bastante e, às vezes, riam.
Lourival ficou a admirar a cena, um pouco espectador com suficiente desejo de actuar. Quando punha a mão nas costas da cadei­ra, para se sentar e dizer o que lhe parecia, fosse lá em que língua fosse, o ruído de pés junto à porta obrigou-o, mais uma vez, a voltar a cabeça.
Era Napoleão Bonaparte, não teve a menor dúvida. Estava a habituar-se.
Marrafa e mão entalada no colete. De chapéu com um bico para cada lado. Rechonchudo e curto de perna. Trazia um rolo grande na mão esquerda e perscrutava o ambiente.
Lourival limitou-se a apontar-lhe o sofá ao lado da lareira e sentou-se, finalmente.
Bonaparte não aceitou o convite que lhe era sugerido. Sentou--se no chão, logo junto ao sofá, atirou o bicórnio para o lado e, tiran­do a mão do colete, começou a desenrolar o canudo que trazia, com extremo cuidado. Pôs-se de gatas, estendeu o mapa, segurando-o com as mãos e os joelhos, e começou a estudá-lo preocupadamente.
Lá fora, uma chuva inesperada e violenta começava a cair.

Lourival, já um pouco fatigado com tanto visitante, levantou--se e foi observar o mapa. Waterloo, claro. Esteve quase para explicar que o fracasso fora devido ao atraso da artilharia, mas depois desistiu. Afinal o problema não era dele.
Quando a porta da entrada foi empurrada com violência des­necessária, ninguém olhou, excepto Lourival que, apesar de tudo, era
0 dono da casa.
Com o cabelinho a cair-lhe para a sobrancelha, enfezado e sem boné, mas ainda reconhecível, quanto mais não fosse pelo bigodito mínimo e pela suástica recortada na braçadeira vermelha que lhe envolvia a manga, Adolfo entrou, de braço erguido.
-   Zieg Heil - disse automaticamente Lourival, de mãos prepa­radas para evitar qualquer estrago inesperado.
Lá fora a trovoada surgira súbita e agressiva, raiando em linhas quebradas o sol que desaparecia. Vibrando num estrondo prolongado.
Adolfo começara a falar, incompreensível como de costume.
Então, pela primeira vez, a porta das traseiras que dava para a cozinha abriu-se.
Todos se calaram.
A voz monocórdica, cansativa e rezinguenta, afirmou, antes do seu dono entrar na sala:
-   Temos de nos lembrar que somos um país de gente humilde.
1              Vvemos saber que a pátria nos obriga a viver com o arado numa das mãos, e a espada na outra; e com economia...
Lourival não quis ouvir mais, nem sequer olhou. Farto de saber i|iiem era estava ele. Num repelão, pulou para a porta da frente, que I ontinuava aberta.
Lá fora a chuva parara. A trovoada também. Apenas uma luz vaga e inútil invadia a casa. E o pio inesperado de um mocho.
Olhou em volta, não fosse haver alguém à paisana com mão no bolso e olho bovino. Não havia. Saiu e correu discretamente ao quintal, lá atrás, onde estava o velho Fiat sempre oportuno.
O sol desaparecera e tudo parecia boiar numa penumbra oscillante.

Lourival entrou no carro, ligou o motor e pisou, num arranque violento. O carrinho partiu, com Lourival, por entre a azinhaga, até chegar à estrada principal.
Lourival travou então, pôs a cabeça de fora e olhou ainda uma vez a casa pobre que, lá em cima, continuava a existir.
Entre a escuridão crescente a casa recortava-se, uma nuvem avermelhada e sem razão a envolvê-la como uma esfera fluida.
Meteu a cabeça para dentro. E o pé no pedal. O mais que podia.
Seis horas depois, percorrida a estrada e o trânsito citadino ainda discreto, chegava a casa, metia o carro na garagem e galgava os três andares, sem olhar ao elevador.
Abriu a porta do apartamento e, veloz, dirigiu-se ao barzinho acolhedor. Tomou dois gins triplos, puros e quase sem respirar. Sentiu--se melhor, muito melhor.
Sabia exactamente o que fazer. Viera a pensar nisso todo o ca­minho.
Tinha ainda uns dinheirinhos no Banco e uns amigos velhos e eficientes, aptos a conseguir tudo o que fosse necessário.
Mal rompesse a manhã, ia obter uma bateria de mísseis Ka-tusha. Não tinha dúvidas, ia mesmo.
E ia tornar lá à província, lá ao interior, lá à casinha isolada, era o que era.
Tinha que se acabar com aquilo, e já.
Eles estavam a voltar. Se não se tratasse imediatamente do as­sunto como devia ser, voltavam todos. Era o que faltava!

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