Lourival tinha finalmente conseguido o tempo suficiente e o local
apropriado para escrever o livro que trazia na cabeça. Alugara uma casinha
pequena, bem no interior do país, completamente isolada e rodeada de pinheiros
sussurrantes. Afastada da estrada principal e da aldeia, chegava-se lá por uma
azinhaga que mal permitia passagem ao velho Fiat.
Instalara-se, com a máquina de escrever, entre a mobília simpa-licamente
modesta, e dispusera-se a trabalhar com eficiência durante seis meses, pelo
menos. Alimentação tinha-a ali ao alcance, na aldeia. E um bom vinho, um pouco
fechado mas gostoso, numa tasca discretamente escura e convidativa onde, às
vezes, passava uma hora, ou até duas, de conversa fiada com os velhos pachorrentos.
Sem televisão, que ali não chegava. Na verdade, tudo pelo melhor.
Estava a terminar o segundo capítulo com relativa facilidade. Corria bem,
fluente, o enredo deslizava e o problema desenvolvia-se, lógico.
Meteu nova folha na máquina e ia
levar à boca o copo de tinto, quando ouviu bater na porta da frente que dava
mesmo para a casa de entrada onde costumava trabalhar e comer. Admirou-se. Bem,
talvez alguém da aldeia a pedir-lhe que escrevesse uma carta para França,
Alemanha ou coisa no género. Um pouco intrigado, foi abrir. E deu um passo
atrás, num pasmo imenso.
À sua frente, recortado pela luz
do sol já próximo do poente, um homem enorme e barbudo olhava-o. Mas isso era o
menos. Afinal já vira bastantes indivíduos hirsutos, aliás era do costume
vigente andar assim. A coisa de pasmar é que vinha de couraça, elmo grego
empenachado com viseira subida, saiote pela coxa, escudo redondo (com um relevo
indecifrável) enfiado no braço esquerdo, espada curta pendente ao lado e, é
claro, sandálias. Além disso, cheirava muitíssimo mal.
O provável guerreiro barbudo
deu-lhe um encontrão agressivo, entrou e ficou especado a olhar para tudo, com
o sobrolho franzido.
Lourival começou a pensar
activamente, duvidando que os americanos já tivessem chegado ali, com o filme
histórico. No entanto, como costumam chegar a toda a parte, do Chile a Oeiras,
tudo era possível.
O estrangeiro continuava a olhar em volta. Observava
a mesa, as cadeiras, o sofá velho junto à lareira, os livros nas prateleiras.
Pôs um dedo na tecla da máquina de escrever. A tecla saltou e fez tac. Recuou e
franziu mais o sobrolho.
Lourival não se conteve. Atirou a
pergunta, áspera:
- Afinal o que é que você quer?
O outro virou-se. Parecia ainda
novo, embora a barba, o mau cheiro e um certo ar brutal não o ajudassem muito.
Encarou Lourival e, de repente, teve uma expressão de cansaço que lhe adoçou um
pouco os traços duros do rosto. E começou a falar.
Louriçal ficou varado. Pelo que
se lembrava do distante 7° ano dos liceus, estava a ouvir grego, grego
antigo, com pouquíssimas declinações, aliás. Veio-lhe imediatamente à memória
a Ilíada, Anacreonte, Píndaro e toda a estopada consequente.
O possível grego explicava-se.
Gesticulava. Atirou um murro tremendo à mesa e calou-se, de braços caídos.
Lourival não sabia o que fazer.
Aquilo não era possível, não podia ser. Então não é que o visitante inesperado
se afirmava como Alexandre da Macedónia! Alexandre, o Iskander da chegada às
índias! Ele há coisas do diabo! Mas resolveu encarar o acontecimento tal como
se devia. Sorriu conciliador, fez um gesto largo e apontou uma cadeira junto à
mesa. Não se deve irritar desnecessariamente ninguém.
Alexandre, o da Macedónia, sorriu
também ao de leve mas, logo em seguida, fechou a cara. Sentou-se, com novo
murro na mesa. Tirou escudo e elmo, atirando-os para o chão ao lado da cadeira.
Depois começou a coçar a guedelha encaracolada, razoavelmente imunda.
Lourival não esteve com meias
medidas. Pegou no avantajado caneco de barro ainda meio de vinho, que estava na
mesinha ao lado da lareira. Com movimento eficaz do braço, apresentou-o ao
Alexandre. E ficou a ver.
O grego em potência pegou no
pichei que talvez lhe recordasse qualquer coisa milenária, sabe-se lá, e
levou-o à boca. Sôfrego, emborcou tudo, limpou a boca com as costas da mão,
bateu com o caneco na mesa e riu, riu abertamente para Lourival.
Lourival não teve mais dúvidas.
Aquilo era mesmo um vinhão e o outro era mesmo o brigão histórico. Puxou uma
cadeira e sentou-se também.
O macedónio, numa última
gargalhada, pôs-se de pé. Deu uma tremenda palmada nas costas do Lourival,
desafivelou a cinta de couro entrançado e atirou a espada curta para cima da
mesa. Pôs as mãos nas ancas, de punhos fechados, e ficou a olhar, voraz, para
um pão saloio poderoso que Lourival comprara na véspera, na esperança do lhe
durar toda a semana.
Lourival, ainda meio engasgado
com a palmada, recordou as obrigações da hospitalidade e ergueu-se para ir
buscar o pão. Foi quando ouviu entrar alguém, pela porta que ficara aberta.
Virou-se e deixou de se preocupar com o pão.
À entrada estava um homem alto,
talvez nos cinquenta anos experientes, careca, nariz aquilino, magro e enrolado
numa coisa que parecia um lençol de luxo. E de sandálias, era óbvio. Lourival
teve a sensação súbita de já o ter visto. No entanto, o traje do outro
pareceu-lhe um pouco impróprio.
- Vale - disse o recém-chegado,
erguendo subtilmente a mão direita, com os olhos a abundar de ironia.
— Ave César - respondeu
imediatamente Lourival, num condicionamento dado pelo De Bello Galico do 6.°
ano remoto.
Júlio César deu uns passos,
folgou a toga que o apertava, com o punho, onde se desenhava uma longa cicatriz
pelas costas, da mão, afastou a cadeira junto à mesa e sentou-se em frente do
grego fedorento, capitão de exércitos e conquistas.
Lourival, já disposto a tudo, pegou no pão magnífico, numa garrafa de vinho
da terra que estava no chão, logo ao lado da porta da cozinha, tomou a posição que lhe pareceu mais digna e
pôs tudo em cima da mesa.
Os visitantes estavam a
conversar.
Lourival não
percebeu patavina. Aquilo nada tinha a ver com o que aprendera no liceu e
noutros sítios. Soava como uma língua viva, cantante, inesperada. E foi até à
porta, espreitar o tempo e certificar-se bem onde estava.
Lá fora o
murmúrio dos pinheiros continuava. O sol descia, distante e familiar, deixando
uma leve cor de nostalgia a pairar, preguiçosa, por cima de tudo, como manta
de retalhos quente o esburacada.
Pareceu-lhe
notar qualquer coisa invulgar, como se a casa estivesse envolta em
transparência oscilante, mas a ideia foi-se-lhe embora ao ouvir o som
burocrático do sino na povoação.
Voltou
para dentro, na intenção de pedir explicações e, se possível, entrar na
conversa, que um bate-papo era coisa que sempre lhe agradara.
Grego e
romano levavam a garrafa à boca, numa alternância rítmica bem simpática. E
falavam. Falavam bastante e, às vezes, riam.
Lourival
ficou a admirar a cena, um pouco espectador com suficiente desejo de actuar.
Quando punha a mão nas costas da cadeira, para se sentar e dizer o que lhe
parecia, fosse lá em que língua fosse, o ruído de pés junto à porta obrigou-o,
mais uma vez, a voltar a cabeça.
Era
Napoleão Bonaparte, não teve a menor dúvida. Estava a habituar-se.
Marrafa e
mão entalada no colete. De chapéu com um bico para cada lado. Rechonchudo e
curto de perna. Trazia um rolo grande na mão esquerda e perscrutava o ambiente.
Lourival
limitou-se a apontar-lhe o sofá ao lado da lareira e sentou-se, finalmente.
Bonaparte
não aceitou o convite que lhe era sugerido. Sentou--se no chão, logo junto ao
sofá, atirou o bicórnio para o lado e, tirando a mão do colete, começou a
desenrolar o canudo que trazia, com extremo cuidado. Pôs-se de gatas, estendeu
o mapa, segurando-o com as mãos e os joelhos, e começou a estudá-lo
preocupadamente.
Lá fora, uma chuva inesperada e
violenta começava a cair.
Lourival,
já um pouco fatigado com tanto visitante, levantou--se e foi observar o mapa.
Waterloo, claro. Esteve quase para explicar que o fracasso fora devido ao
atraso da artilharia, mas depois desistiu. Afinal o problema não era dele.
Quando a porta da entrada foi empurrada com violência
desnecessária, ninguém olhou, excepto Lourival que, apesar de tudo, era
0 dono
da casa.
Com o
cabelinho a cair-lhe para a sobrancelha, enfezado e sem boné, mas ainda
reconhecível, quanto mais não fosse pelo bigodito mínimo e pela suástica
recortada na braçadeira vermelha que lhe envolvia a manga, Adolfo entrou, de
braço erguido.
- Zieg Heil - disse automaticamente Lourival, de mãos
preparadas para evitar qualquer estrago inesperado.
Lá fora a
trovoada surgira súbita e agressiva, raiando em linhas quebradas o sol que
desaparecia. Vibrando num estrondo prolongado.
Adolfo começara a falar,
incompreensível como de costume.
Então,
pela primeira vez, a porta das traseiras que dava para a cozinha abriu-se.
Todos
se calaram.
A voz monocórdica, cansativa e rezinguenta, afirmou,
antes do seu dono entrar na sala:
-
Temos de
nos lembrar que somos um país de gente humilde.
1 Vvemos saber que a pátria nos obriga a viver com o
arado numa das mãos, e a espada na outra; e com economia...
Lourival não quis ouvir mais, nem sequer olhou. Farto
de saber i|iiem era estava ele. Num repelão, pulou para a porta da
frente, que I ontinuava aberta.
Lá fora a chuva parara. A trovoada também. Apenas uma
luz vaga e inútil invadia a casa. E o pio inesperado de um mocho.
Olhou em
volta, não fosse haver alguém à paisana com mão no bolso e olho bovino. Não
havia. Saiu e correu discretamente ao quintal,
lá atrás, onde estava o velho
Fiat sempre oportuno.
O sol desaparecera e tudo parecia
boiar numa penumbra oscillante.
Lourival entrou no carro, ligou o
motor e pisou, num arranque violento. O carrinho partiu, com Lourival, por
entre a azinhaga, até chegar à estrada principal.
Lourival travou então, pôs a cabeça
de fora e olhou ainda uma vez a casa pobre que, lá em cima, continuava a
existir.
Entre a escuridão crescente a
casa recortava-se, uma nuvem avermelhada e sem razão a envolvê-la como uma
esfera fluida.
Meteu a cabeça para dentro. E o
pé no pedal. O mais que podia.
Seis horas depois, percorrida a
estrada e o trânsito citadino ainda discreto, chegava a casa, metia o carro na
garagem e galgava os três andares, sem olhar ao elevador.
Abriu a porta do apartamento e,
veloz, dirigiu-se ao barzinho acolhedor. Tomou dois gins triplos, puros e quase
sem respirar. Sentiu--se melhor, muito melhor.
Sabia exactamente o que fazer.
Viera a pensar nisso todo o caminho.
Tinha ainda uns dinheirinhos no
Banco e uns amigos velhos e eficientes, aptos a conseguir tudo o que fosse
necessário.
Mal rompesse a manhã, ia obter
uma bateria de mísseis Ka-tusha. Não tinha dúvidas, ia mesmo.
E ia tornar lá à província, lá ao
interior, lá à casinha isolada, era o que era.
Tinha que se acabar com aquilo, e
já.
Eles estavam a voltar. Se não se
tratasse imediatamente do assunto como devia ser, voltavam todos. Era o que
faltava!
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