Tales of Mystery and Imagination

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Álvaro de Sousa Holstein: A Biblioteca



Perdi-me nesse dia. Não havia motivo algum para que tal acontecesse, mas o facto é que me perdi
mesmo. Deambulava sem rumo definido pela zona ribeirinha de Gaia, perfeitamente alheio a tudo,
quando dei por mim num dédalo de ruas estreitas. Sem saber muito bem o que fazer, resolvi entrar
na mais estreita delas, que, perante mim se derramavam, como se tratasse de mercúrio. Após andar
uma dezena de metros deparei com uma tabuleta onde estava escrito em letras góticas, Biblioteca.
Como desde sempre sou um apaixonado por tais lugares, algo muito próximo da veneração, decidi
seguir a direcção apontada. Pouco tive de andar para encontrar um estranho edifício que ostentava
no seu frontal a já referida inscrição.
Sem sequer pensar, dirigi-me para a imensa porta e bati fortemente na aldraba em forma de gárgula.
As pancadas soaram fortes e pesadas e, um pouco depois, uma minúscula criatura abriu a porta. Mal
o vi senti uma profunda sensação de mal-estar, mas como o estranho homem tinha um aspecto
repugnante, logo a isolei, por a atribuir a tão hedionda manifestação de arte genética. Recomposto,
perguntei-lhe se poderia entrar para visitar a Biblioteca. Mal tinha terminado de formular a
pergunta, ele deu uma portentosa gargalhada e mandou-me entrar.


Transpus o umbral da porta e vislumbrei uma majestosa sala, repleta de monstruosas estátuas,
magníficas tapeçarias que lembravam as de Bayeux, mas que em vez de comemorar a batalha de
Hastings, apresentavam legiões de demónios e anjos em combate, uma Anunciação em tudo
parecida com a de Carlo Crivelli, mas em que a única figura humana, é a de Maria, banhada pela luz
de uma nave estelar, de um estranho fresco a brilhar no tecto e imensas placas repletas de
incompreensíveis símbolos, pendentes de braços inconcebíveis que saíam das colunas de
sustentavam toda a estrutura.
Tomado num misto de nojo e ternura, dei por mim a ser abanado pelo pequeno homem que
sorrindo me tentava arrastar para uma das muitas portas que se encontravam ao longo de toda a
parede que circundava a sala. Sem uma palavra sequer, lá segui o homenzinho que me introduziu
pela sétima porta a contar do lado esquerdo e vi-me então numa das salas da biblioteca.
O caos era total. Livros amontoavam-se por todo o lado e uma dúzia de pessoas e outros seres
encontravam-se a rebuscar, consultar, ler, conversar e escrever, espalhados por toda a sala. Olhei
para o lado em busca de uma explicação, mas o meu estranho e silencioso cicerone tinha
desaparecido. Após alguns minutos de confusão, apercebi-me do cheiro a livros mortos que se
desprendia de toda a sala e reparei nas carcaças de livros que pejavam o chão. Nunca na vida tinha
deparado com tal espectáculo, mesmo estando habituado a ver livros putrefactos, desfeitos e em
vias de extinção nas prateleiras da biblioteca pública municipal do Porto.
A um canto, dois livros: o Paraíso Perdido, de Milton e os Indícios de Oiro, de Sá Carneiro, discutiam
animadamente a Ode Triunfal, do Álvaro de Campos, perante o olhar perdido de Pessoa que acabava
de acender mais um cigarro. Um pouco ao lado Luís Borges acariciava os seios romanos de uma
mulher-loba de imensa cabeleira ruiva que indiferente se entretinha a ler o Corvo, de Alan Poe. No
outro extremo da sala, Pessanha discutia com um enorme escaravelho azul as novas tendências da
poesia simbolista, indiferentes à marcha do tempo medida por uma clepsidra, enquanto dois anjos
esverdeados e com as asas chamuscadas, pendurados na trave por cima deles de cabeça para baixo como morcegos, se entretinham a apalpar o sexo um ao outro, tentando chegar a conclusão de qual
o sexo dos anjos.
De um ponto um pouco à esquerda, perto do quadro onde John Dee estava a fazer um horóscopo,
desprendeu-se um hediondo arroto. Olhei para ver qual o autor de tal façanha e deparei com um
corpo amuralhado por de trás das obras completas do Aquilino Ribeiro. Aproximei-me para tentar
ver quem seria a personagem. Era Agustina travestida de homem que tentava em vão esconder-se de
Pascoais que impassível do outro lado da mesa a atingia, sem piedade, com um magnífico látego de
luz.
Perante tal descoberta fiquei ainda mais confuso. Tudo o que na sala se passava era absurdo e não
devia passar de uma imensa alucinação, pensei. Mas não o era.
Tornei a passar os olhos pela sala e deparei com um hipógrifo e um basilisco calmamente sentados a
tomar café e a tecerem comentários corrosivos a obra de Gaspar Simões - Vida e Obra de Fernando
Pessoa -observados por este que se limitava a abanar a cabeça em sinal de concordância.
Era de mais para mim. Vomitei copiosamente em cima de Byatis, que ia a passar nesse momento por
entre as minhas pernas, a qual não achando graça alguma a que Ihe estivessem a vomitar em cima,
disparou:
- Que filho da... havia de cá ter entrado.
Com ar de parvo fiquei perplexo a olhar para ela que não satisfeita me tentou atingir com o De
Vermis Mysteriis. Afastando-se de seguida deixando um rasto nauseabundo.
Sem saber o que fazer no meio de tamanha confusão, resolvi ir falar com o Pessoa.
A sua mesa estava do outro lado e só lá consegui chegar após uma atribulada viagem, depois de ter
tropeçado em alguns seres que não sabia o que fossem e ter esbarrado com vários livros zombies
que andavam a mostrar os dentes podres. Por fim lá cheguei e questionei-o:
- Caro Fernando, é capaz de me dizer que raio de biblioteca é esta? E que se encontra aqui a fazer, se
já esta morto?
Olhou para mim com um ar estupefacto e enfastiado de gato que foi acordado e respondeu-me:
- Não me diga que realmente não sabe!
- De facto não sei. - Retorqui mal-humorado.
- Incrível! Estamos na Biblioteca Onírica. Por certo já ouviu falar nela?
- Não, não ouvi.
- É pena.
Sem mais uma palavra, virou-se para o lado e desatou a berrar com duas metáforas do Eugénio de
Castro que se entretinham a remexer os papéis que ele tinha a sua frente.
Fiquei desesperado. A insanidade pairava sobre mim como uma rede de pesca e começava a sentir as tremuras que sempre antecedem as minhas crises de angústia profunda.
Saí da beira de Pessoa e dirigi-me a Lovecraft que tinha acabado de entrar e interpelei-o:
- Também por aqui?
- Porquê? Tem alguma coisa com isso? - Perante tal resposta apeteceu-me bater-lhe, mas consegui
controlar-me e entrar no jogo dele.
- Não, de facto não tenho. Só que não compreendo o que estão todos cá a fazer, quando ainda por
cima já estão todos mortos.
- Mortos! É mas é parvo. Ora essa, mortos! Está doente é o que está.
- Doente, eu?
- Claro, que outra coisa pode ser? Mas diga-me, quem é você para que o tenham deixado franquear
as sagradas portas do nosso templo de prazer?
Fiquei possuído perante tal pergunta. Até parecia que era difícil ali entrar.
- Quem sou? - Repliquei. - Por certo que não sou o raio que o parta, mas tenho pena.
Olhou-me perplexo e berrou:
- Olha, ó Borges, o puto tem genica.
Lá no fundo Luís Borges virou-se para nós, passou o seu olho menos doente pela minha pessoa e
opinou:
- Já tinha reparado. O que ele precisa é de ir brincar um pouco com as metáforas do Nuno Júdice.
- Penso que é uma óptima ideia. - Concordou Lovecraft.
Logo de seguida senti que me puxavam. Olhei para o lado direito e vi que era o Ricardo Reis que me
agarrava a manga da camisola e me tentava arrastar para uma mesa próxima onde estava pousado o
livro do Júdice, A Partilha dos Mitos.
Lá me deixei ir e pouco depois tinha toda aquela amálgama de homens, outras coisas e seres
diversos a olhar para mim.
Como provavelmente estavam à espera de me ver brincar com as metáforas, comecei a ler o poema
«Aura». Quando acabei, uma das metáforas resolveu levantar-se e desatar a insultar-me. Não gostei
mesmo nada e espetei-lhe uma forte bofetada. Tombou redonda e de seguida, fugiu a ganir. Ainda
hoje tenho remorsos de ter assim empobrecido o poema.
Após tudo ter terminado, levantei-me e logo Pessoa me meteu o braço levando-me até à porta.
Abriu-a e entregou-me ao minúsculo homem que me disse serem horas de me ir embora. Quase já à
saída da estranha biblioteca ouvi Borges a berrar lá do fundo:
- Não se esqueça de aparecer de novo. Cá o esperamos.
De nada mais me lembro. Subitamente um vazio inominável abateu-se sobre mim. Tudo
desapareceu.
Não sei quanto tempo depois, comecei a distinguir vagamente contornos loucamente distorcidos e
esbatidos. Com um terrível esforço, fui conseguindo a pouco e pouco, começar a raciocinar e a focar
as imagens. Quando por fim o consegui, vi que estava em pé frente a Biblioteca Pública de Gaia.
Como precisava de relaxar após tanta confusão, resolvi entrar. Dirigi-me ao balcão e requisitei o Livro
de Areia, do Jorge Luís Borges.
Até hoje ainda não consegui perceber como lá fui parar. Dentro em breve espero fazer uma nova
visita à zona ribeirinha e se os Deuses não forem “madrastos”, encontrar de novo a Onírica Biblioteca.

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