Tales of Mystery and Imagination

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Maria Isabel Barreno: A Freira e o Assassino



Madre Angélica atravessava de noite os escuros corredores do convento. Tinha aquele hábito. Dormia mal. Acordava invariavelmente duas horas depois de ter adormecido, no silêncio denso, escuro, só cortado pelas folhas das árvores, em conversa com o vento, no jardim, e pelo ressonar de várias das freiras – umas porque eram gordas, de enormes peitos, e aquele peso excessivo certamente lhes comprimia os pulmões, outras porque tinham sinusite, bronquite, enfim, várias obstruções do aparelho respiratório. Assim pensava Madre Angélica, invariavelmente, atravessando os escuríssimos corredores, ouvindo o ressonar das suas irmãs em Cristo, e concluía, sempre com um estremecimento: quantas obstruções e filtros e escuras passagens temos dentro de nós, acerca dos quais ignoramos tudo, e que sub-repticiamente se revelam ao conhecimento dos outros, na nossa inconsciência, pela calada da noite ou por qualquer outro lapso de nossa vigilância. Aqui chegada, Madre Angélica estremecia, mais ainda do que durante toda a caminhada. Ela tinha medo daqueles escuros e desertos corredores, mas tinha aquele hábito, aquele consolo no seu mau dormir: levantava-se da cama e dirigia-se à capela, onde entrava pela porta do coro, que dava para o interior do convento.
A capela destacava-se do edifício do convento. Tanto a sua porta principal como a porta da sacristia davam para a pequena álea que atravessava o jardim e conduzia até ao portão de ferro, bem alto, fechado à noite. Madre Angélica entrava, quase rangia os dentes com o arrepio que lhe dava o chiar da porta nos gonzos, descia pela escadinha de caracol e sentava-se num dos bancos da nave. Aí orava, pedindo a Deus vários socorros porque se achava muito imperfeita. No fim da sobressaltada caminhada sabia-lhe bem aquela solitária intimidade com Deus, toda a capela só para si.



Mas naquela noite, mal Madre Angélica se sentara no seu banco favorito, pareceu-lhe ver uma ténue luz e ouvir um fraco ruído que chegavam da sacristia. Prestou maior atenção e não teve dúvidas: alguém andava na sacristia com pés de veludo, segurando uma luz. Não fora a luz, pensaria que decerto se tratava de outra freira, também arrastando sua insónia pelo convento, igualmente buscando na capela o possível refúgio. Na capela, sim; mas porquê na sacristia? Assim pensava Madre Angélica. Mas, mesmo deixando de parte a bizarra escolha da sacristia como local de possível consolo, havia o incontornável problema da luz: nenhuma freira poderia acender uma vela que fosse, nem se atreveria a fazê-lo mesmo que pudesse. Não havia luz eléctrica no convento, os fósforos ficavam durante a noite fechados à chave numa gaveta do quarto da Madre Superiora, durante o dia só destinados à cozinha e às velas do altar, as únicas existentes em todo o convento.
A penitência e o medo determinavam em partes iguais estas duras regras. Anos atrás houvera no convento um pavoroso incêndio, no qual haviam morrido várias freiras. Sobre o acontecimento fizera depois o capelão um exaltado e sibilino discurso, em que alertava para os perigos do excesso de conhecimento, do excesso de luz que irremediavelmente consumia as almas impreparadas para tais claridades, como o fogo consome a madeira, e concluía que por essa razão se dava Deus apenas a conhecer aos santos, àqueles que haviam já afastado de si as chamas de todos os infernos. Madre Angélica era noviça no tempo em que este discurso fora produzido e viu-se enlevadamente levantada nos ares, sobrevoando fogos infernais, enquanto Deus lhe comunicava, de coração a coração, poderosíssimos segredos. Os anos haviam passado, nenhuma iluminação chegara, apenas uma vida razoavelmente tranquila, e Madre Angélica evitava cuidadosamente tocar em fósforos, a não ser quando lhe incumbia cozinhar ou acender as velas do altar.
Era por isso redobrado o seu sobressalto naquela noite. Freira desobediente, intruso maldoso ou, hipótese remota, fantasma desassossegado, todas as hipóteses tinham uma ameaçadora qualidade sulfurosa. Enquanto Madre Angélica hesitava no que fazer, se fugir pé ante pé, se ficar onde estava, se, hipótese de igualmente remotas probabilidades, ir à sacristia, o destino encarregou-se de resolver por ela, como quase sempre acontece. Um homem surgiu da porta da sacristia, segurando na mão esquerda uma vela, na direita um volumoso saco. O homem nem viu Madre Angélica. Dirigiu-se ao altar e começou a tirar castiçais e jarras, guardando-os no seu já pesado saco. Quando ele tentou forçar a porta do sacrário Madre Angélica não se conteve: foi como se tentassem arrancar-lhe o coração, e soltou um gemido. Virou-se então o facínora, segurando alto a vela para ver a maior distância, e apercebeu-lhe finalmente o vulto, enrodilhado no banco. Riu-se, o bandido. Quando esta constatação atravessou a perturbada mente de Madre Angélica, um súbito e forte ímpeto surgiu.
Foi como a acalmia, densa e de origem desconhecida, após o tumulto da tempestade. Você ri-se, bandido, gritou. E o ladrão deixou de rir, vendo a freira aproximar-se, pálida de raiva. Era mais a surpresa do que a apreensão, por isso ele não esboçou qualquer defesa. Madre Angélica chegou bem perto, com um gesto de espantosa celeridade apanhou um castiçal de bronze, bem à vista na boca escancarada do saco, assentou forte pancada na têmpora esquerda do ladrão, que logo caiu por terra. Debruçando-se em seguida sobre o homem caído, Madre Angélica continuou batendo, abrindo mais duas ou três feridas profundas, só parando quando apercebeu, horrorizada, o prazer enorme com que esfacelava aquela cabeça. Susteve então o braço, enquanto no seu cérebro continuavam gostosas imagens de ossos triturados, de sangue correndo até à última gota. Compreendeu que o ladrão estava morto, e gritou.
O alvoroço foi grande e durou vários meses. Ninguém pôs em dúvida que o ladrão tentara violar a freira, tendo sido esta guiada, na sua frenética acção, pelo enérgico zelo de manter seu voto de castidade. Apenas um bispo – aliás considerado por todos como homem antiquado – sugeriu a Madre Angélica que maior teria sido a santidade de seu acto se, à semelhança de Santa Maria Goretti, se tivesse deixado matar, em vez de passar ao contra-ataque. Madre Angélica ouviu com humildade, e concordou.
Soube a freira que o morto tinha mulher e filhos. Foi pedir-lhes perdão e passou a visitá-los assiduamente, com esmolas e conversas de consolo. A viúva aceitava as esmolas com muita satisfação, e garantia a Madre Angélica que o defunto não fazia cá falta nenhuma.
Absolvida por todos, Madre Angélica não sentia qualquer alívio.
Guardava em si, terrível, a revelação que tivera naquela noite: um outro ser, um assassino, habitava o seu corpo, para além do seu eu de Madre Angélica que ela julgava conhecer tão bem. Fora esse assassino quem reagira ao riso escarninho do ladrão, quem fora tomado de absoluta raiva, quem sentira tão íntimo prazer no acto cruel de matar. Não, não podia Madre Angélica argumentar consigo própria – com seu eu habitual e manso – que era aquela apenas uma sua característica desconhecida, escura, cega; que todos temos lados secretos, características escondidas, alojados sabe-se lá em que longas memórias genéticas, ligados a instintos de sobrevivência e outras teimosias anacrónicas e irracionais.
Não, Madre Angélica sabia: aquele ser que despontara caminhando com passo firme para o ladrão revelara-se inteiro segurando na mão o castiçal de bronze. Ela apercebera sua forma masculina, sua inteligência fria, suas anteriores andanças pelo mundo. Apercebera também seu disfarce, como se dissimulava atrás da doce Madre Angélica, como se insinuara em tantos dos seus actos, dos seus olhares, dos seus pensamentos. Como assistira com frieza e alguma alegria à morte de sua mãe, como esbofeteara uma vez uma criança pobre que lhe pedia esmola com insistência, como desprezava a Madre Superiora, achando-a uma mulherzinha vulgar e ridícula.
Não haviam sido estes actos e pensamentos conscientes no tempo de seu acontecer. Ela sofrera intensamente, olhando o corpo da mãe, acusando-se de não a ter perfeitamente amado, castigando a criança pobre, pensando quão doloroso é o ensino da paciência, vendo a Madre Superiora rebolar escada abaixo depois de ter tropeçado no seu pé. Só agora percebia que a dor sentida fora a desse assassino que em si habitava, lutando e estrebuchando para exprimir sua inteira crueldade. Fora esse o sufoco quando vira fechar-se o caixão de sua mãe, sem nada poder acrescentar àquela morte, quando dissera à chorosa criança pobre sofro eu mais do que tu. O assassino não era filho da mulher morta, passara anos sentindo-se encurralado, numa ridícula submissão, engolindo prepotências para salvaguardar seu esconderijo, quisera exprimir o seu ódio e a sua vingança secando as lágrimas filiais. Nem consigo chorar, dissera Madre Angélica à sua melhor amiga; e esta julgara compreender, abraçara-a, a tua dor é muito grande, dissera. Quando ficara paralisada, vendo a Madre Superiora despenhar-se numa confusão de saias e véus, havia uma esperança enorme e maldosa no tremor dos seus braços, havia uma memória de acto voluntário no seu pé direito. E o assassino não só era absolutamente insensível à dor infantil como tivera, algures no seu nebuloso passado, episódios de chacinas violentas, nem sequer por grande necessidade, apenas por alguma conveniência. Quando Madre Angélica visualizara criancinhas aterradamente mortas, imaginara ingenuamente que se tratava de compaixão e remorso, de consciência dos perigos e misérias que ameaçavam essas indefesas crianças. Constatava agora que se tratava duma tranquila memória do assassino.
Com a mesma tranquilidade contemplava ainda o corpo do ladrão no chão, com a mesma intensidade era constantemente tentada a desferir mais e mais golpes na cabeça sangrenta. Remorsos, honestos remorsos não sentia nenhuns; apenas essa funda dor de não ter terminado um acto que se anunciava esplendorosamente, freneticamente, absolutamente cruel. Um acto que talvez fosse o fim de um destino, a libertação de precárias existências.
Passado algum tempo, Madre Angélica foi internada num asilo psiquiátrico. Toda a gente dizia que ela não pudera superar o sentimento de culpa, mas ela sabia que a verdade era outra. O assassino viera ocupar seu lugar ao lado do manso eu de Madre Angélica e entre ambos se estabelecera um forte diálogo, com partilha de segredos e memórias.

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