Marcelo Maluf: A Bruxa corsária

Marcelo Maluf



Não faz tanto tempo assim, vivia na pequena cidade de Oito Ruivos uma velha bruxa Corsária. A última de sua espécie, meio bruxa, meio pirata, filha do encontro de saqueadores portugueses dos oceanos com feiticeiras índias. Uma legítima bruxa brasileira. Corsária tinha um hobbie muito suspeito. Colecionava olhos de crianças. Não era à toa que Oito Ruivos também era conhecida como a cidade das crianças caolhas.

Qual era a finalidade de colecionar os olhos das crianças? Bem, uma coleção não tem uma razão específica, colecionamos por colecionar, para juntar num mesmo lugar objetos de que gostamos, para dizer que temos mais, para ficar olhando, para ter algo que é só nosso etc. Mas no caso da bruxa Corsária era diferente. Ela colecionava os olhos para ver o futuro neles. Eram como bolas de cristal ─ só as bruxas corsárias e os seus descendentes é que tem o dom de ver o futuro nos olhos – e não tinha que ser olho de criança, não, para a coisa dar certo. Mas essa Corsária, preferia que fosse. E não bastava só um olho, precisava de muitos.

Cada olho tinha um tempo de vida de no máximo cinco ou seis dias, e um tinha um jeito diferente de ver o futuro. A magia só funcionava se a criança ficasse com um olho, para que houvesse uma conexão entre o olho que estava com a bruxa e o olho da criança na hora de ler os destinos.

Por conta disso, poucas crianças com dois olhos ainda restavam na cidade. Entre elas estavam Fernando e Clarice. Duas criaturinhas minúsculas e magricelas, abandonadas, esfomeadas e sujas. Nunca tiveram notícias dos seus pais. Haviam se conhecido nas ruas da pequena cidade e dormiam numa carcaça de carro num terreno baldio. Sobreviviam graças à generosidade de alguns moradores.

A velha bruxa nunca quis saber dos olhos deles, pois “que futuro poderão me mostrar esses dois desamparados?”, ela pensava. Mas devido à escassez de olhos bons, os dois acabaram entrando na lista da Corsária, e logo ficaram sabendo da novidade:

─ E agora, Fernando, o que faremos? – Clarice estava desesperada.


─ Vamos nos esconder! – sugeriu Fernando.

─ A cidade é pequena demais... Acho que não demora muito para que ela encontre a gente! – Clarice ficou desanimada.

Fernando passou a mão pela cabeça, ficou de cócoras, pegou um pequeno graveto e começou a riscar o chão de terra. Era assim que ele pensava.

─ Você vai ficar aí desenhando, enquanto os nossos olhos estão correndo o risco de serem roubados? – Clarice se irritou.

Foi nesse instante que Fernando olhou para o céu.

─ Urubus! Urubus!Urubus! Estamos salvos! – ele gritava e dançava.

─ Agora enlouqueceu de vez! – Clarice não se conformava como num momento como aquele Fernando podia fazer brincadeiras.

─ Estamos salvos, Clarice, tive uma ideia! Os urubus irão nos salvar! Venha comigo!

Os dois saíram correndo em direção ao bando de urubus. Correram durante uns vinte minutos até chegar até eles.

─ Veja Clarice, lá está o nosso salvador! ─ Fernando gritou e apontou para o boi atropelado na beira da estrada.

─ Salvador? ─ Clarice não estava entendendo nada.

─ Os olhos do boi! – gritou Fernando.

─ Ficou louco? Eu não vou fazer isso! – Clarice bateu os pés.

─ Mas é a nossa única chance para enganar a bruxa!

Clarice sabia que a ideia era boa, mas tinha nojo daquilo, pavor de colocar a mão num animal morto. Fernando teve que arrancar sozinho os olhos do boi. Clarice espantou os urubus. Seguiram direto para a casa da velha Corsária.

Sob os telhados da casa, centenas de ratos espiavam pelas rachaduras das telhas à espera de um descuido da bruxa, prontos para roubar um olho e saciar a fome. Clarice ficou arrepiada só de ver os ratos. Mas o maior problema estava dentro da casa e não fora.

─ O que você está fazendo, Fernando?

─ É educado tocar a campainha antes de entrar na casa dos outros, não é?

─ É mais educado ainda, ou melhor, é mais inteligente não enfiar a cabeça dentro da boca do leão, não é?

─ De que leão você está falando, Clarice?

─ Chiiiuuuu! Ouça!

─ Quem está aí? Quem está aí? – era a voz rouca e estridente da velha bruxa – Quem ousa perturbar a tranquilidade de uma velha senhora?

Nheeeeeeccc! A bruxa abriu a porta.

─ Ora, ora, o que temos aqui! Veja só se não são as duas crianças mais sujas e feias da cidade... O que é que vocês querem? – Ao dizer isso a bruxa percebeu que estava esnobando duas crianças que ela mesma havia colocada na sua lista e ainda tinham os dois olhos. Logo mudou o tom de voz.

─ Ah, mas que falta de educação a minha. Vocês não querem entrar e tomar um chocolate quente e comer alguns bolinhos de framboesa? Vamos entrem! – insistiu a velha.

Fernando agarrou o braço de Clarice que ameaçava fugir e a puxou para dentro da casa.

─ Você quer perder um olho é isso? – Clarice cochichou para Fernando.

─ O que é que os dois estão cochichando, hein? ─ Gritou a bruxa – Quer dizer, hum..hum...do que tanto falam? São namoradinhos? – disse a bruxa mudando o tom de voz.

─ Não!!! – Clarice e Fernando responderam juntos.

─ Bem, minhas adoráveis crianças, aqui estão o chocolate quente e os bolinhos de framboesa. Comam! – ofereceu a bruxa.

Os dois estavam realmente famintos e até que a velha Corsária fazia um ótimo bolinho de framboesa, pelo menos estava bem cheiroso. Fernando ia pegar o bolinho quando Clarice fez um sinal negativo com as mãos. Mas ele parecia não compreender. Clarice não teve alternativa senão derrubar toda bandeja no chão.

─ O que foi que você fez garota? – a bruxa se irritou.

─ É! O que foi isso, Clarice? – disse Fernando, ainda sem entender nada.

─ Bolinhos de framboesa são mais avermelhados e não amarelos como esses! Essa bruxa asquerosa deve ter colocado alguma coisa venenosa na receita!

A bruxa arregalou os olhos e ficou três vezes maior que o seu tamanho e deu uma risada estridente e muito aguda que ecoou por toda a cidade.

─ Já me cansei dessa conversa mole! Vamos ao que realmente interessa! – A bruxa voou para bem perto de Clarice e Fernando e agarrou os dois pelo queixo, olhou no fundo dos olhos de cada um, e disse:

─ Os olhos é que me interessam! Apenas os olhos!

Antes que a bruxa arrancasse os olhos dos dois com as próprias mãos, Fernando deu uma sugestão:

─ Já que iremos perder os nossos olhos, preferia que eu mesmo fizesse isso! É a única coisa que peço!

─ Eu também! – concordou Clarice.

A bruxa hesitou um pouco, mas já estava cansada daquelas crianças.

─ Está bem, está bem, vão poupar o meu trabalho! Mas façam isso rápido, que vocês já me tomaram muito tempo!

Clarice e Fernando ficaram de costas para a bruxa e enfiaram a mão na mochila de Fernando. Esfregaram os olhos do boi morto no rosto, deixaram o sangue escorrer. Taparam um dos olhos com as mãos e gritaram uma dor fingida. Entregaram os olhos para a bruxa. Eufórica, a velha nem percebeu o truque dos desabrigados. Pegou os olhos e logo foi ver o futuro neles. Mas o que poderia mostrar os olhos de um boi atropelado? Só uma coisa embaçada e cinzenta.

A bruxa sabia que estava ficando velha e perdendo os poderes com o tempo. Com as suas irmãs tinha sido exatamente assim. E naquele momento, passou a acreditar que já não conseguia mais ver o futuro nos olhos das crianças, e caiu em profunda desilusão.

─ Estou acabada... Acabada! – a bruxa repetia para si mesma.

Fernando e Clarice aproveitaram o desconsolo da velha no sofá para chamarem todas as crianças caolhas da cidade. Pelo menos teriam de volta os seus olhos secos.

As crianças atearam fogo na casa da velha. Depois a amarraram de ponta cabeça numa árvore e lhe arrancaram um olho. Queriam ver o futuro nele, mas não tinham esse dom. Só Clarice e Fernando puderam ver. Só Clarice e Fernando tinham o dom de ver o futuro no olho da bruxa. Eles não sabiam, mas traziam essa herança no sangue. Bastou apenas o olhar caolho da velha Corsária para descobrirem que eram irmãos, e que haviam encontrado a sua verdadeira mãe.

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