José Eduardo Agualusa: O homem da luz

José Eduardo Agualusa



Nicolau Alicerces Peshkov tinha uma ca­beça enorme, ou talvez o corpo fosse mirrado para ela, o certo é que parecia colocada por en­gano num físico alheio. O cabelo, o que restava, era daninho e ruivo e o rosto coberto de sardas. O nome improvável, a fisionomia ainda mais extraordinária, tudo isso se devia à passagem pelas terras altas do Huambo de um russo extraviado, um russo branco, que nos seus delírios alcoóli­cos se vangloriava de ter servido Nicolau II como oficial de cavalaria. Além do nome e das sardas Nicolau Alicerces Peshkov herdara do pai a paixão pelo cinema e uma velha máquina de pro­jectar. Foi precisamente o nome, as sardas, a máquina de projectar, digamos pois, a herança russa, que quase o levou a enfrentar um pelotão de fuzilamento.

Antes disso havia passado dois dias e uma noite escondido dentro de uma caixa de peixe se­co. Acordara sobressaltado com o latido dos ti­ros. Não sabia onde estava. Isso acontecia-lhe sempre. Sentou-se na cama e procurou lembrar-se, enquanto o tiroteio crescia lá fora: chegara ao entardecer, pedalando na sua velha bicicleta, alu­gara um quarto na pensão de um português, des­pedira o miúdo James, que tinha família na vila, e fora-se deitar. O quarto era pequeno. Uma cama de ferro com uma tábua por cima e sem colchão. Um lençol, limpo mas muito usado, puído, a cobrir a tábua. Um penico de esmalte. Nas pare­des alguém pintara um anjo azul. Era um bom desenho, aquele. O anjo olhava-o de frente, olha­va para alguma coisa que não estava ali, com o mesmo alheamento luminoso e sem esperança de Marlene Dietrich.

Nicolau Alicerces Peshkov, a quem os mucubais chamavam o Homem da Luz, abriu a janela do seu quarto para se inteirar das razões da guerra. Espreitou para fora e viu que ao longo de toda a rua se agitava uma turba armada, mili­tares alguns, a maioria jovens civis com fitinhas vermelhas amarradas na cabeça. Um dos jovens apontou-o aos gritos e logo outro fez fogo na sua direcção. Nicolau ainda não sabia que guerra era aquela mas compreendeu que, qualquer que fosse, estava do lado errado — ele era o índio, ali, e não tinha sequer um javite (machadinha) para se defender. Saiu do quarto, em cuecas, en­trou pela cozinha, abriu uma porta e encontro um quintalão estreito, fechado ao fundo por um alto muro de adobe. Conseguiu saltar o muro, trepando por uma mangueira esquá­lida, que crescia ao lado, e achou-se num outro quintal, este mais ancho, mais desamparado, junto a uma barraca de pau a pique que parecia servir de arrecadação. Pensou em James Dean. O que faria o garoto naquela situação? Certa­mente saberia o que fazer, James era um espe­cialista em fugas. Viu um tanque de lavar roupa, com água até cima, coberto por uma lona. James Dean entraria para dentro do tanque, e ficaria ali, o tempo que fosse necessário, à espera que lhe nascessem escamas. Ele, porém, não cabia naquela prisão. O corpo até se encaixava mas não a cabeça. Estava neste desespero, podia ou­vir a turba a aproximar-se, quando deu com a caixa de peixe. O cheiro era pavoroso, um odor forte a mares putrefactos, mas tinha o espaço exacto para um homem agachado. Assim me­teu-se dentro da caixa e aguardou.


Espreitando por uma fresta viu chegar a malta das fitinhas. Arrastavam pelo pescoço, empurravam, faziam avançar a pontapé e à coronhada, cinco pobres tipos cuja única culpa, aparentemente, era falarem umbundo. Deitaram os homens de costas e recomeçaram a bater-lhes, com as armas, com os cintos, com grossos paus, gritando que aquilo era apenas o matabicho. Uma mulher apareceu pouco depois segurando uma pistola, afastou os agressores com um simples olhar, encostou a arma à nuca de um dos des­graçados e disparou. A seguir fez o mesmo com os outros quatro. Trouxeram a seguir dois rapa­zes e quatro senhoras, uma delas com um filho pequeno às costas, todos chorando e lamentando-se muito. Ao verem os cadáveres a gritaria aumentou. Um dos soldados destravou a arma: «Quem chorar os mortos morre tam­bém.»

Os outros começaram a espancar o grupo, não poupando sequer a criança, ao mesmo tempo que um sujeito com uma câmara de filmar dan­çava em redor.

Nicolau Alicerces Peshkov afastou o rosto da fresta e fechou os olhos. Não lhe valeu de nada: mesmo com os olhos fechados viu dois dos jovens com fitinhas violarem uma das senho­ras; viu-os matarem a criança, à coronhada, e o resto do grupo a tiro e pontapés.

Saiu da caixa ao entardecer do dia seguin­te. Estava tão exausto, era tal o tumulto no seu peito franzino, que não se apercebeu do militar, ali mesmo, sentado junto à caixa, vigiando os cadáveres. O homem olhou-o surpreso, alegre como um garoto que tivesse acabado de achar um brinde dentro de um bolo-rei, e conduziu-o pela mão ao quartel da polícia. À entrada um homem muito alto, magro, de barba cerrada, parecia esperar por eles. Levaram-no até uma sala sem janelas, fizeram-no sentar-se numa ca­deira. O homem alto perguntou-lhe o nome. «Peshkov? Nicolau Peshkov?! O camarada é russo? Calha bem. Eu estudei em Moscovo, na Lubianka, falo russo melhor do que português.»

E desatou numa algaraviada hermética que pareceu divertir toda a gente. Nicolau Peshkov riu-se também, vendo os outros rir, mas apenas por uma questão de cortesia, porque o que realmente lhe fazia falta era chorar.

O homem alto ficou bruscamente sério. Apontou para uma maleta de couro sobre a sua secretária:

«Conhece isto?»

Nicolau Peshkov reconheceu a mala onde guardava o projector e os filmes. Explicou quem era. Há quarenta anos que percorria o país com aquela máquina. Orgulhava-se de ter levado a sétima arte aos desvãos mais longínquos de An­gola — lugares esquecidos pelo resto do mundo. Na época colonial viajava de comboio. Bengue­la, Ganda, Chianga, Lépi, Catchiungo, Chinguar, Cutato, Catabola, Camacupa, Munhango, Luena. Onde o comboio parava ele saía. Estendia a tela, colocava o projector sobre o tripé, armava meia-dúzia de cadeiras de lona para os notáveis da vila. O povo, esse, vinha de muito longe, dos sertões em redor, de lugares com nomes secretos, inclusive de lugares sem nome algum. Ofereci­am-lhe cabras, galinhas, ovos, carne de caça. Sentavam-se do outro lado da tela, contra a luz do projector, e viam o filme pelo avesso.

A guerra após a independência destruiu o caminho de ferro e ele ficou amarrado às cerca­nias das grandes cidades. Perdeu em pouco tem­po tudo quanto havia conseguido nos vinte anos anteriores. Fixou-se no Sul. Viajava de bicicleta, com o seu ajudante, o jovem James Dean, entre o Lubango e a Humpata, entre a Huíla e a Chibia. Por vezes arriscava descer a Moçâmedes. Talvez Porto Alexandre. Baía dos Tigres. Não saía dali. Levava um lençol branco, prendia-o à parede de uma cubata, qualquer parede servia, pre­parava o projector e passava o filme. James Dean pedalava a sessão inteira para produ­zir a electricidade. Numa noite serena, sem lua, não havia melhor sala de cinema.

O homem alto ouviu-o com interesse. To­mou notas.

«Pode provar que é efectivamente o cida­dão que pretende ser?»

Provar? Nicolau Peshkov tirou do bolso da camisa um papel amarelado e desdobrou-o cuidadosamente. Era um recorte do Jornal de An­gola. Uma entrevista publicada cinco anos antes: O Último Herói do Cinema. Na fotografia, a pre­to e branco, Nicolau Alicerces Peshkov posava ao lado da sua bicicleta, as mãos no guiador, a enorme cabeça ligeiramente fora de foco.

O homem alto agarrou no recorte, voltou-o, e começou a ler um artigo qualquer sobre a importação de farinha de bombo. «Não é esse, chefe, não é esse», gemeu Nicolau Peshkov, «leia por favor a reportagem que está do outro lado. Veja a fotografia. Sou eu». O homem alto olhou-o com desdém:

«Camarada Peshkov, você, um sujeito que ignora a língua paterna, é você que me diz o que devo ou não devo ler?!”

Leu o artigo até ao fim. Até ao fim, não, porque o artigo estava cortado a meio.

«Onde está o resto desse artigo?»

Nicolau Alicerces Peshkov falou devagar:

«Chefe, não é esse o artigo. O artigo que interessa, através do qual posso provar que sou de facto a minha própria pessoa, esse artigo está do outro lado».

O homem alto perdeu a paciência:

«Porra! Pensas que aqui somos todos bur­ros?! Estou a perguntar onde está o resto deste artigo. Se você não responder eu lhe mando fu­zilar por ocultar informação. Vou contar até dez».

Talvez ele não saiba contar até dez — pensou Nicolau Peshkov. Infelizmente sabia. Contou até dez, pausadamente, e depois girou a cadeira e ficou um longo momento a olhar a parede. Voltou-se, abriu a maleta que estava so­bre a secretária e retirou o projector.

«Mostra-nos lá o filme, fantoche. Quero saber o que andaste a filmar. Objectivos milita­res, está-se mesmo a ver».

Nicolau Peshkov pediu um lençol limpo, um martelo e pregos. Esticou o lençol e pregou-o à parede. Montou o projector sobre uma ca­deira. Não disse nada. Tinha aprendido muito nas últimas horas. O filme era, de alguma forma, obra sua. O trabalho de uma vida. Montara-o, quase fotograma a fotograma, recorrendo ao que sobrara dos filmes do pai. Pediu que apagassem a luz. Um dos soldados subiu para um banco e desenroscou com cuidado a lâmpada do tecto.

Peshkov ligou a máquina à corrente e uma luz puríssima caiu sobre o lençol. Na primeira cena via-se uma família a ser atacada por pás­saros dentro da sua própria casa. O episódio impressionou muito os assistentes (impressionava sempre). O homem alto falou por todos: "Já vi­ram?! Passarinhos tipo mabecos". A seguir apa­receu um velho empoleirado sobre um telhado a tocar violino. "É para enxotar os pássa­ros", concluiu um dos guardas, "esse cota é feiticeiro". Viu-se ainda um caubói a beijar a namorada em frente a uma cascata. Finalmente um homem de olhos tristes, chapéu na cabeça, despediu-se de um casal num aeroporto. Quando o casal embarcou apareceu um outro sujeito com uma pistola, mas o tipo do chapéu foi mais rápido e deu-lhe um tiro. O casal devia estar ainda a fugir dos pássaros. The End.

A luz do projector tremeu, apagou-se, e fez-se um grande silêncio. Finalmente o homem alto levantou-se, subiu para o banco, e voltou a enroscar a lâmpada da sala. Suspirou.

«Você pode ir Peshkov. Desapareça. O filme fica».

Nicolau Alicerces Peshkov saiu para a rua. Uma lua imensa brilhava sobre o mar. Puxou um pente do bolso traseiro das calças e alisou com ele os seus últimos cabelos ruivos. Endirei­tou as costas e foi à procura de James Dean. O miúdo saberia o que fazer.

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